Casca

Continuamos a tratar da casca

Continuamos a moldar a casca

Continuamos a remar de costas

E a provar águas quase mortas

E a viver ruas já pisadas

E a levar pedras já usadas

Num saco meio roto

Num saco meio morto

Tentamos não manchar a casca

Para fazer brilhar a casca

Tentamos não parar de costas

Tentamos não falhar respostas

Que nunca nos vejam de fora!!

É para nós que o mundo adora

Passos de dança no chão

É para nós que os olhos olham.

Fingimos não pensar na casca

Tentamos perdoar a casca

Separamos bem e mal

Quando se inspira o real

E se queima o que é vida

Mais uma hora despida

Onde águas não escorrem

E mágoas não morrem

Para quê tirar retratos?

Para quê limpar os fatos?

Para caber na moldura

Não ligar a ruptura

Mandar calar o pó

Deixar ficar o nó

Partir mais uma corda

Expulsar mais uma nódoa

Tentamos disfarçar demónios

Por medo desviamos olhos

Por fuga apagamos fogos

Por escudos renascemos novos

Sem rasto esquecemos lábios

Altivos, rastejamos, sábios

Cada vez mais fundo

No buraco do mundo

Com força agarra-se a casca

Que é só o que nos resta

Que o mastro derreteu

Mais tudo encolheu

Quisemos testar barreiras

E construímos teias

Difíceis de romper

E aqui ficamos presos...na casca.

Casca é tempo que dói

É janela fechada que estilhaça

quando se olha para tras..

Vento é o que bate na cara

É só largar a casca!!

Não se olha para trás!



By Toranja

Cada palavra é uma semente...

Fotografia de Tiago Estima in olhares.com

“Como é que poderemos definir o nosso tempo? Qual é o factor que o unifica e o distingue? Claro que é uma época de grandes contradições. Na verdade, atingimos um desenvolvimento tecnológico que era impensável há vinte anos atrás e um subdesenvolvimento - ou melhor, uma degradação ética - igualmente insuspeitável.
Vivemos na época das antinomias. Do máximo bem estar e da maior insatisfação, da extrema segurança e dos medos incontroláveis, das sofisticadíssimas comunicações planetárias e da incapacidade total de comunicar entre as pessoas.
O nosso tempo é um tempo ditatorialmente democrático, é o tempo do domínio absoluto do ruído, do alarido, dos gritos, da desarmonia sonora que já atinge e envolve os seres humanos de todos os povos e de todas as condições sociais.
Sim, se tenho de pensar num factor unificador da nossa época, é justamente o alarido.
O silêncio morreu e, ao desaparecer, arrastou consigo tudo o que constitui a base do ser humano. Não há silêncio no ar à nossa volta, não há silêncio nos espíritos, nos corações. A ausência de silêncio é o triunfo daquilo a que todas as tradições orientais chamam «o macaco» - o nosso espírito - que gera ruídos, grita por causa de uma sombra,s e agita, salta, faz alarido para abafar o alarido dos outros.
O macaco gera um turbilhão constante de impressões, opiniões, alarmes, um rio a transbordar que faz gorar qualquer tentativa de criar, no espírito e no coração, uma estabilidade e uma ordem verdadeiras.
O alarido incomoda-nos. Consultando o dicionário, descobrimos que «incomodar» significa: estorvar, impedir, obstar, desviar, distrair.
Sim, há sempre alguém ou alguma coisa que quer desviar-se do silêncio, evitar que contemplemos a nossa realidade mais profunda, impedir que dessa realidade nasça e cresça a nossa evolução como pessoas.
«O que a irrigação é para as plantas, é o silêncio para o aumento do conhecimento» escrevia Isaac de Ninive no século VI d.e. De facto, sem silêncio, não posso conhecer-me, não posso conhecer o outro. Sem silêncio, não posso abeirar-me da fonte do saber.
Mas de onde vem o alarido? Porque é que não há força que consiga contê-lo?
Se quero plantar uma árvore no fim do Inverno, costumo preparar o terreno no início do Outono. Há sempre um factor determinante que contribui para o nascimento e a evolução de um acontecimento novo. Por isso o século xx, com o seu rasto trágico de ideologias, niilismo, guerras e extermínios, semeou no novo milénio a bomba-relógio do relativismo ético.
O bem e o mal já não são valores reconhecíveis colectivamente, são derivas do sentimentalismo individual. Se o bem não existe em si, passa a ser bem o que me agrada, o que me satisfaz, e, por conseguinte, mal é aquilo de que não gosto, o que me inquieta, me faz sentir mal.
Graças ao relativismo ético, a nossa sociedadl; renunciou à sua função educativa. A família não educa, a escola não educa, o contexto civil não educa.
De facto, educar significa conduzir, apontar um caminho, mas, para isso, haveria que saber o rumo a seguir. Como se pode apontar um caminho, se a vida é um vaguear sem destino, se não há limites a respeitar, horizontes a atingir? Portanto, mais vale confiar no acaso, a bondade natural do ser humano fará o seu papel e do resto tratarão os acontecimentos com que iremos deparar que nunca serão bons, nem maus e de que, além do mais, não seremos minimamcnte responsáveis.
A tarefa principal dos pais modernos parece; ser apenas a de não criarem obstáculos (que poderiam provocar traumas incuráveis), não estabelecerem limites (para não correrem o risco de cortar as assas à natural criatividade infantil). Pensa-se que será a sabedoria inata da criança a fazê-la escolher o caminho que a levará a realizar-se da melhor forma.
Há um belíssimo provérbio africano que diz: «Para se educar uma criança, é preciso uma aldeia inteira.»
E é mesmo assim, precisa-se da variedade e da diversidade das relações e, ao mesmo tempo, da coesão de uma comunidade que respeita e faz respeitar as suas leis.
Talvez seja por isso que a acanhada família mononuclear, apesar de todos os seus cuidados e subtilezas pedagógicas, gera, na maior parte dos casos, crianças eternas, capazes de conjugar até ao infinito um único e importuno verbo: «Eu quero». E ninguém reparou - ou melhor, ninguém quis reparar - que, entretanto, o provérbio africano foi assumido a nível planetário. Só que já não é o conjunto dos parentes - ou seja, o contexto social feito de pessoas, rostos, histórias humanamente compreensíveis - que educa, mas a anónima e poderosíssima e subtilmente perversa aldeia global.
Perante a abulia educativa dos pais, perante a apatia da escola e a ausência de um grupo formativo, a comunidade educadora passa automaticamente a ser a que é constituída pelo rosto opaco dos mass media, da grande antena que domina e envolve os nossos dias com o seu constante grasnar.
É ela que nos diz no que devemos acreditar e o que devemos desprezar, o que escandaliza e o que, pelo contrário, deve merecer o nosso aplauso. É ela que nos impõe a certeza de que, sem a posse de alguns objectos determinados, resvalaremos para o grande mar dos zés-ninguéns. Como é natural, tudo acontece de uma forma democrática, desprovida de obrigações. Na verdade, para evitar rebeliões, temos de estar convencidos de que somos sempre nós - e só nós - que escolhemos. Mas será mesmo assim?”



in Cada palavra é uma semente de Susanna Tamaro